O presidente Jair Bolsonaro acaba de sancionar o projeto de lei 1615/2019 que, equivocadamente, reconhece, por lei, um segmento da população automaticamente como pessoas com deficiência: aquelas que possuem visão monocular com capacidade de enxergar perfeitamente com um dos olhos.
Ao assinar simultaneamente o projeto de lei que reconhece monoculares como pessoas com deficiência e um decreto que encaminha pessoas desse segmento para a avaliação biopsicossocial, o presidente da república cria um embaraço legal e conceitual, já que cabe a esse instrumento (a biopsicossocial) primeiramente avaliar se a pessoa é ou não cidadão ou cidadã com deficiência e o grau dessa deficiência, se leve, moderado ou severo.
Ao longo dos últimos anos e, em especial, nas últimas semanas, a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB) tem reiterado sua contrariedade ao projeto, por meio de participações em audiências públicas, encaminhamento de ofícios, reuniões e contatos com órgãos da administração pública, ministérios e inúmeras autoridades.
Enviamos pareceres técnicos para o Ministro chefe da Casa Civil; o Ministro da Secretaria Geral da Presidência da República; a Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; o Ministro da Justiça e Segurança Pública; o Ministro da Economia; a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência; líderes partidários do congresso, dentre outros.
No entendimento da ONCB e da maioria dos especialistas em direito, inclusão, acessibilidade e benefícios sociais, o reconhecimento de qualquer deficiência deve ocorrer somente por meio da avaliação biopsicossocial, prevista na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência incorporada como status de emenda constitucional e na Lei Brasileira de Inclusão (LBI).
Diversos órgãos, organizações e entidades, como o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CONADE), Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), Comitê Brasileiro de Organizações Representativas das Pessoas com Deficiência (CRPD), Fórum Paulista de Entidades, dentre outros, também vem se posicionando contrariamente ao projeto de lei, que se mostra como uma aberração jurídica e um retrocesso nos direitos de milhões de brasileiros com deficiência.
Importante alertar que tal sanção presidencial na prática representa perda de direitos não apenas para pessoas cegas e com baixa visão, mas para todas as pessoas com qualquer deficiência, especialmente para aquelas que dependem de benefícios sociais como o BPC, cotas para o mercado de trabalho, dentre outras. Justamente por isto, a ONCB já avalia a possibilidade de entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal.
Em tempo, longe de querer dificultar qualquer direito de quem verdadeiramente o tenha, a ONCB entende que existem as vias justas e corretas para a sua obtenção e que qualquer atalho representa uma excrecência jurídica, pois afronta inúmeros dispositivos legais e às conquistas das pessoas com deficiência.
Por fim, lamentamos que o mesmo governo que nesses dois anos e meio tem se recusado a receber e dialogar com os movimentos representativos das pessoas com deficiência, inclusive com alguns que lhe apoiaram, esteja tão aberto para receber pessoas e segmentos com interesses próprios e juridicamente questionáveis e se engajar em uma causa que, além de ferir de morte a Constituição Federal, representa um retrocesso em inúmeras conquistas de 23,9 por cento dos Brasileiros reconhecidamente com deficiência. Ao nosso sentir, trata-se de um crime de responsabilidade por parte do executivo.